Na busca por economia, sistema anos a frente de seu tempo foi fonte de dor de cabeça para fabricante e consumidores
Por Renato Passos (*)
Eu nunca fui um aluno brilhante. A única estrelinha que ganhei na minha vida, até o momento, é a que o Marlos coloca ao lado do meu nome logo acima. Entretanto, fui um aplicado aluno de motores a combustão interna na faculdade. No decorrer desta matéria, caiu em meu colo um trabalho a ser executado: “A história dos sistemas de desativação parcial dos cilindros”.
E lá fui eu esbarrar na história do precursor deste sistema:
o Cadillac V8-6-4. E tudo aquilo que sua existência traz consigo. Já que
falaremos de verdadeiras barcas, aproveite a sua estadia em casa: pegue sua
dose de Old Parr (sem gelo), guarde sua pochete comprada na Mesbla e coloque
“Southern Cross” do Crosby, Stills & Nash para tocar no seu três-em-um.
Porque navegaremos com tudo para dentro dos anos 1980 novamente.
O CAFE faz suas vítimas
Quando falamos de Cadillac, pensamos automaticamente em luxo
e opulência. Economia, entretanto, não é uma palavra comumente ligada à marca
de Detroit. Mas, como falamos na matéria sobre o Chevrolet Sprint Turbo, os
anos 1970 foram de grandes mudanças no mundo automotriz norte-americano: o CAFE
(Corporate Average Fuel Economy, ou Economia de Combustível Média
Corporativa) veio com tudo para forçar a economia dos automóveis daquela
década, buscando reduzir acima de tudo a dependência da terra do Tio Sam frente
à importação de petróleo.
E ninguém escapava. Nem mesmo a Cadillac. Parte do luxo e da opulência se refletia no tamanho do motor que equipava muito de seus carros naquele período. Sendo assim, nada mais adequado do que duas opções de motor V8 até 1975: de 472 polegadas cúbicas (ou 7,7 litros); podendo obter um propulsor ligeiramente maior – de 500 ci (ou incríveis 8,2 litros).
Mas como atender o CAFE com verdadeiras máquinas de beber
gasolina como estas? Parte da resposta veio com um modelo menor em 1975: o
Cadillac Seville, equipado com um motor de 350 polegadas cúbicas originário da
Oldsmobile. Entretanto, com o passar dos anos, a demanda por maior economia
crescia – e, proporcionalmente, também crescia a preocupação dos engenheiros da
divisão premium da GM.
Depois do Seville, nova investida em 1977: um novo motor,
ligeiramente menor e mais leve, era desenvolvido com base nos outros
propulsores. Mas ainda estamos falando de 7,0 litros de deslocamento (ou 425
pol³). Até 1979, atendia às demandas do CAFE. Depois, o cenário seria nebuloso:
a adoção de injeção eletrônica no motor 425 auxiliava nas demandas
governamentais, mas ainda não eram a resposta para o futuro.
Não obstante, explodiria neste ano a segunda crise do petróleo dos anos 1970, incorrendo em preços mais altos para os barris de petróleo e seus derivados. Desta forma, o inevitável: para 1980, outra redução de tamanho frente ao 472 que originou toda a família. Assim chegava para toda linha Cadillac o motor L61, inclusive para Seville e Eldorado que não usavam o 425. Com 6,0 litros de deslocamento (368 polegadas cúbicas), era oferecido com injeção eletrônica (de série no Eldorado e Seville) ou carburador (nos outros modelos, com tração traseira).
O sistema de injeção era monoponto e chamado pela fabricante
de DFI, sigla para Digital Fuel Injection – ou simplesmente Injeção
Digital de Combustível. Curioso para saber os números que este mastodonte mecânico
entregava? Anota aí: nas versões carburadas, 150cv às 3.600rpm de potência e
torque de 366Nm às 2.000rpm. Nas versões com injeção, havia decréscimo de 5cv no
valor de potência máxima. Apenas o Seville poderia utilizar outro motor, o 5.7
da Olds que o acompanhava desde seu lançamento.
Valores impressionantes? De forma alguma, a despeito do
torque elevado a baixas rotações bem alinhado ao gosto americano, onde o carro
trafegava pelas highways em overdrive apenas ronronando em médias
velocidades. Esta redução de tamanho atendia às demandas do CAFE para o início
dos anos 1980? Não. E é aí que a história se torna interessante.
No ritmo dos megabytes
Reduzir ainda mais os motores dos Caddies incorreria em queda
de torque e potência. Além de piorar ainda mais o desempenho de barcas de 1.800
quilos já asfixiadas, o tiro poderia facilmente sair pela culatra, aumentando o
regime de uso do motor e consequentemente o consumo energético. Outra solução
seria necessária para atender às demandas do CAFE. Mas o que fazer?
Para 1981, a General Motors uniria esforços com a Eaton Corporation
– grande fabricante americana de peças e sistemas automotivos, com
reconhecimento mundial. E desta parceria surgiria o motor L62 como substituto
do L61. E em sua maior parte, ele era um L61: sua novidade consistia naquilo
que seria chamado de “deslocamento modular”.
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E o que era esse sistema? Basicamente, sob condições de carga (demanda de potência do motor) reduzida, os cilindros seriam desativados automaticamente aos pares. Assim, o V8 6.0 se tornaria um V6 de 4,5 litros ou mesmo um V4 de 3,0 litros em condições mais favoráveis. Este recurso prometia redução de consumo em até 30%, melhorando de maneira significativa os números da GM no CAFE e mantendo os 150cv entregues nos modelos do ano anterior.
O L62 veio como motor-padrão nos Cadillac Deville, Fleetwood
e Eldorado. Paralelamente, era um opcional no valor de US$ 325 para o Seville,
que vinha de série com o motor diesel Olsdmobile LF9 (este também digno de
história para outro dia). Para entendermos como ocorria a mágica do novo motor,
um pouco de teoria: falamos aqui de um propulsor V8 tipicamente americano, com
comando de válvulas no bloco e acionamento destas através de varetas que
impulsionam balancins. Estes, por sua vez, tocam as válvulas para seu movimento
de abre-e-fecha.
Revoluções por minuto
Mecanicamente, o sistema da Cadillac utilizava solenoides
eletronicamente controlados para desabilitar os balancins dos cilindros a serem
desativados. Isso manteria as respectivas válvulas de admissão e escape
fechadas, sem inserção de ar e combustível naquele cilindro desativado. O ar
comprimido nos cilindros desativados atuaria como uma “almofada” para reduzir a
sensação de falha do motor.
Em paralelo, este ar armazenado também serviria para manter
as temperaturas do cilindro elevadas, visando assim para uma ignição mais
rápida sob quando o motorista pisasse no acelerador e retomasse a combustão
naquela câmara. Para alojamento dos solenoides, os cabeçotes do L62
apresentavam diferenças significativas frente ao motor 368 original do ano
anterior.
Pelo prisma eletroeletrônico, a estrela do processo estava no Computer Command Module (CCM), ou simplesmente Módulo de Comando Computacional. O CCM utilizava sensores para monitoras diversas grandezas do funcionamento do automóvel, tais como velocidade do motor, EGR, marcha-lenta, pressão do ar no coletor de admissão, temperatura do líquido de arrefecimento etc. Tudo isso para identificar se o veículo estava em uma situação propícia para desativação dos cilindros, como por exemplo um deslocamento a velocidade constante em rodovia plana ou pequena demanda de aceleração e força.
Se o CCM entendesse que era hora da desativação dos
cilindros, um microprocessador acionaria o mecanismo de desativação do balancim
e ajustaria a mistura ar/combustível para a admissão dos cilindros em
funcionamento. Para acompanhamento do motorista – um must na época de
exibicionismo digital – um medidor digital no painel denominado “MPG
Sentinel” demonstrava quantos cilindros estavam em operação ou dados diversos
de consumo de combustível do veículo.
O fabricante garantia aos compradores que a mudança sensorial
durante o deslocamento do veículo seria quase imperceptível e que um aumento de
30% na economia de combustível nas médias rodoviárias valeria a pena frente a uma
ligeira hesitação à medida que o motor passasse de um V4 ou V6 para V8.
Além dessa tecnologia futurista de economia de combustível,
o L62 também trouxe recursos avançados para diagnóstico de problemas,
permitindo que os mecânicos visualizassem 45 códigos de erro por meio do
monitor do MPG Sentinel ou do sistema de ar condicionado sem o uso de scanners
de código externos. Os mecânicos podiam visualizar os códigos de diagnóstico expostos,
obter leituras ativas dos sensores e até mesmo ativar os solenoides
relacionados ao sistema de desativação do cilindro anos antes que esses
sofisticados diagnósticos remotos se tornassem comuns.
Quando o muito é pouco
A publicidade da Cadillac se vangloriava de que o CCM do L62
podia processar até 300.000 operações por segundo. Como veremos, embora isso
possa ter sido verdade na teoria, temos poucas provas de que essas operações
foram executadas corretamente e de que eram suficientes para o desempenho
correto do sistema: Embora os componentes mecânicos do V8-6-4 possam ter sido
sólidos, os eletrônicos do sistema não eram desta maneira.
Basicamente, a parceria Eaton-GM havia subestimado
drasticamente a potência computacional necessária para acompanhar as leituras
de sensores que provinham do L62 quando operado no mundo real. Os primeiros
exemplares do L62 que foram colocados nas mãos da mídia automotiva operavam exatamente
como anunciado. No entanto, as reclamações dos clientes sobre o desempenho do
motor foram registradas quase imediatamente após o início das vendas.
A principal crítica centrou-se nos atrasos das respostas do
motor, quando este passava de 4 ou 6 cilindros para a operação em todos os 8. O
software não era rápido ou poderoso o suficiente para gerenciar o trabalho em
questão, de forma que o controle eletrônico dos balancins não era
suficientemente rápido para responder aos comandos do pé direito do motorista.
Os sistemas de desativação dos balancins e de injeção de
combustível “batiam cabeça” até o ponto em que nenhum deles sabia com certeza
em que estado estava o motor, o que implicava no envio de combustível em
excesso ou insuficiente frente ao número de cilindros que estavam realmente em
uso.
Não obstante, certas velocidades de cruzeiro também levavam o CCM a um estado de confusão. O computador se perdia quanto à quantidade ideal de cilindros em funcionamento para uma dada situação, indo e voltando como uma transmissão automática que não conseguia selecionar a marcha adequada para a situação em questão.
Existem relatos de motoristas que evitavam certas
velocidades nos Caddies que, caso permanecessem durante algum tempo,
começava um aloprado ciclo de desativação e ativação dos cilindros sem uma
lógica dinâmica. Isso também se traduzia em falhas nas demandas de entrega de
potência imediata (como sair de uma velocidade contínua para uma ultrapassagem,
por exemplo), que tornavam desagradável a operação do motor.
Futuro do pretérito
Os clientes também estavam insatisfeitos com a suavidade do
motor nos modos de 4 e 6 cilindros. Frente a isso. a Cadillac lançou 13
atualizações do CCM, todas via chip EPROM, mas nenhuma delas conseguiu
superar os obstáculos intransponíveis do sistema. Desta forma, A maioria dos
V8-6-4 viu o sistema de deslocamento modular sendo desativado, deixando os
motores L62 permanentemente no modo V8.
Outra curiosidade: devido ao design da injeção monoponto
junto ao corpo de borboleta do acelerador, aliada ao descontrole da mistura
ar-combustível, ocorria acúmulo de gasolina em cima das válvulas de admissão durante
períodos mais longos em ritmo cruzeiro sem grande variação de carga e
consequente desativação dos cilindros, sendo inseridos em seu interior quando
estas válvulas se abrissem novamente.
Frente a tudo isso, a revista Consumer Guide’s testou um modelo com o L62 e disse: “Raramente um motor reprojetado despertou tanto interesse quanto o V8-6-4 da Cadillac. Funciona lindamente, mas como não oferece economia realmente aprimorada, diríamos que a Cadillac enfrentou muitos problemas por nada.”
O texto continuava com essa passagem profética: “Claramente,
essa é uma medida paliativa, projetada para impedir que o consumo de combustível
dos modelos de luxo decline ainda mais rapidamente diante de padrões mais
rigorosos de emissões. Os especialistas de Detroit já estão dizendo que esse
motor terá desaparecido em 1984.”
Como se veria, essa estimativa para o fim do L62 em 1984
seria um acerto pela metade: logo em 1982 a Cadillac o tiraria de linha para o
consumidor comum, substituindo-o pelo igualmente infeliz HT4100 – que se
mostraria pouco potente e com confiabilidade duvidosa. Ainda assim, o L62
permaneceu em produção até o final de 1984, equipando apenas veículos de chassi
comercial (principalmente limusines) que eram pesados demais para se
contentar com o fraco HT4100.
Embora o infeliz motor L62 tenha durado apenas um ano de produção para a maior parte do público-alvo, a gama de modelos da Cadillac em 1981 predisse o futuro dos modernos motores V8 e V6 de cilindrada variável, bem como o futuro dos diagnósticos a bordo dos veículos. A tecnologia em questão levou mais de duas décadas para voltar aos Estados Unidos, desta vez no atual Hemi de 5,7 litros da Chrysler de 2003, chamado de MDS (Multiple Displacement System, ou Sistema de Deslocamento Múltiplo).
Os motores de deslocamento variável de hoje operam sem
problemas e oferecem confiabilidade real graças a sofisticados sistemas de
gerenciamento de motores alimentados pela evolução computacional dos últimos 40
anos. Em termos de sofisticação mecânica, estão nivelados com o projeto da
Cadillac e da Eaton do início dos anos 80.
Alguns propulsores de deslocamento variável da atualidade, diferentemente do L62, normalmente usam elementos hidráulicos no lugar das varetas para desligar os cilindros, reduzindo a pressão de óleo no atuador desejado e desativando as válvulas como consequência. Outros motores utilizam solenoides para travar ou destravar os balancins, repassando ou não para as válvulas os movimentos guiados pelo comando de válvulas.
Quando se considera a diferença no poder da computação pessoal desde 1981 frente ao mundo de hoje, ela realmente demonstra o quão ambiciosos os engenheiros da GM estavam na implementação do motor L62. Entretanto, sabendo da imaturidade da tecnologia eletrônica e computacional de então, a Cadillac será conhecida para sempre como a empresa que lançou o motor V8-6-4 L62 inovador e propenso a problemas em sua linha de modelos de 1981.
A fortuna, infelizmente, nem sempre favorece os ousados.
(*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG
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